sexta-feira, novembro 20, 2015

Excepcional

Era um dia quente, como tem sido todos os dias desse ano sem chuva, e eu saia para comer no lugar de sempre durante o intervalo de almoço da minha nova, e que tão rápido já tomou seu ar de monotonia, rotina de trabalhador assalariado. E apesar de não ser esse o ponto do texto, há um certo tom de romantismo em me enxergar como um proletário moderno, um sentimento que posso definir como um orgulho plebeu. Aqui divago, mas estou bem certo que também divagava então, naquele começo de tarde causticante.
Absorto nas contradições urbanas, de espaço, de relações sociais, de cenário, tudo incomodava, mas nada que pudesse tomar minha atenção de forma exclusiva, nada em particular que me movesse a apontar "isso está errado". Todo o conjunto me causava uma sensação de fastio, altamente indigesto para a hora da refeição mais importante do dia.
Tudo tão habitual, que eu já me armava do conformismo meio pesaroso, meio preguiçoso, como que para me esconder por trás de um escudo de insensibilidade, não como um ideal para a vida, mas para tolerar a rotina.
De um lado, uma fila considerável de carros enormes e caros, tão grandes quanto os egos de seus proprietários. De outro, uma pista convidativamente vazia.
Foi então que, para interromper e contrastar ousadamente à barulhenta morosidade dos automóveis, e ao apático e modorrento cinza do concreto, fez-se notar a figura da ciclista.
E restituiu-se-me o sentido da palavra: deslumbrado.


quinta-feira, novembro 05, 2015

Não sei se é uma boa ou má notícia, então constará apenas como registro do fato:
O cão voltou.

domingo, maio 03, 2015

Sobre querer ficar



A rotina altera nossa visão de mais de uma maneira. Se por um lado ela pode nos tornar indiferentes aos elementos que uma vista ainda não habituada, poderia absorver com entusiasmo e julgar como de grande beleza, por outro lado, pequenas mudanças no decorrer dos detalhes podem capturar nosso interesse de uma forma imprevisível.

Ir à varanda, no começo da madrugada, com fones de ouvido, escutando alguma música escolhida mais ou menos de acordo com o humor – com a intenção de alimentá-lo ou de transformá-lo –, fumar um cigarro e observar a rua deserta. Esse é um hábito, e não chega a ser propriamente uma rotina, que vivi por um certo tempo.

Depois de alguns meses me familiarizei, se é que se pode dizer tal coisa, com algumas das figuras que, vez ou outra, interrompiam o quadro estático da rua deserta, fazendo-a menos deserta por alguns instantes. E eu gostava de imaginar sobre essas pessoas. Não que eu me perdesse em biografias fantásticas de curiosíssima gente estranha – por algum motivo todos de madrugada pareciam muito estranhos – esse privilégio era reservado às pessoas nos ônibus. Aos intrusos da minha vista do deserto da rua, minha imaginação limitava-se à sua origem e seu destino imediatos, e invariavelmente...

Um dia uma dessas personagens foi um cachorro. Fosse o acaso dele apenas estar passando, não daria nenhuma atenção em absoluto, mas o cão firmou-se em frente ao portão de uma casa, sentou-se e permaneceu observando através das grades, os dois cachorros que moravam ali. E era apenas isso – nenhuma agitação, nenhum latido, nenhum uivo –.

A cena se repetia dia após dia. E quanto mais se fixava a rotina, mais intrigado eu ficava com os sentimentos do animal solitário. Parecia evidente que ansiava por companhia, impossibilitado pela intransponível barreira, restava observar de longe. Sua postura silenciosa, posso dizer até mesmo soturno, me lembrava resignação. Mas essa resposta não me satisfez. A consistência de suas visitas e a sua pontualidade mostravam alguma persistência e inquietação, o tipo de atitude diametralmente oposta à do conformado.

Se não era companhia, o que ele via atrás das barras de ferro? Talvez tivesse fome, e olhasse para aquele lugar como um pequeno oásis – um lugar onde não faltava água, nem comida, nem abrigo –, talvez olhasse seus semelhantes com pena, sempre presos ali com a mesma vista, uivando para os mesmos vizinhos, cheirando os mesmos cheiros, e sentisse uma ânsia insaciável de contar-lhes sobre o mundo, e tentasse dia após dia descobrir uma maneira de transmitir tudo que sentia e experimentava sobre a vida.

Essa resposta me satisfez, por mais fantasiosa que seja a ideia. E gosto de pensar que ele não conseguiu encontrar um meio e resolveu seguir em frente, porque certa noite ele simplesmente parou de aparecer.

Depois de um tempo parei de fumar, e de visitar a varanda de madrugada. Mas o pensamento nunca me abandou. A vista familiar por cima do guarda-corpo.

Na primeira oportunidade que surgiu, viajei.

quinta-feira, janeiro 29, 2015

Primeiro post completamente não-original aqui no blog.


Convites Supérfluos

Tradução (livre e amadora) do original em italiano Inviti Superflui de Dino Buzzati.


Queria que você viesse a mim numa noite de inverno e ficássemos juntos, atrás das janelas, observando a solidão da estrada escura e gelada, recordarmos dos invernos das fábulas, onde vivíamos juntos sem saber.
Pelos mesmos caminhos encantados, andamos de fato você e eu, com passos tímidos, cruzamos juntos florestas infestadas de lobos, e haviam mesmo gênios que espiavam entre os tufos de musgo suspensos às torres, entre revoadas de corvos. Juntos, sem saber, dali talvez contemplamos a vida misteriosa, que aguardava. Ali palpitaram, pela primeira vez em nós, loucos e carinhosos desejos.
"Tu lembras?" diremos um ao outro, abraçados ternamente no quarto quente, e você me sorrirá confiante, enquanto fora as folhas espalhadas pelo vento farão sons sombrios.
Mas tu - agora recordo-me - não conhece as fábulas antigas do rei sem nome, dos orcs e dos jardins enfeitiçados. Nunca passaste, raptada, sob as árvores mágicas que falam com voz humana, nem nunca bateste à porta do castelo deserto, nem caminhaste à noite em direção à luz distante, nem adormeceste sob as estrelas do Oriente, embalada pelo lume sacro.
Atrás das janelas, na noite de inverno, provavelmente permaneceremos mudos, eu perdendo-me nas fábulas mortas, tu em outras preocupações que desconheço. Eu perguntarei "Tu lembras?", mas tu não lembrarás.
Queria contigo passear, um dia de primavera, com o céu acinzentado, e ainda alguma velha folha do ano anterior carregada da estrada pelo vento, nos bairros do subúrbio, e que fosse domingo. Nesses caminhos surgem pensamentos melancólicos e grandes, e nesses momentos a poesia vaga, unindo os corações daqueles que se querem bem. Nascem também esperanças que não se sabe dizer, favorecidas pelo horizonte interrompido entre as casas, dos trens fugazes, das nuvens setentrionais.
Simplesmente nos seguramos pelas mãos e andaremos à passos rápidos, dizendo coisas insensatas, tolas e carinhosas. Até que acenderão os lampiões e dos casarios esquálidos sairão as histórias sinistras da cidade, as aventuras, as novelas fascinantes. E então nós ficaremos em silêncio, ainda de mãos dadas, porque as almas se falarão sem dizer palavra.
Mas tu - agora recordo-me - nunca disseste-me coisas insensatas, tolas e carinhosas. Nem podes, então, amar aqueles domingos que digo, nem tua alma sabe falar à minha em silêncio, nem reconheces a hora certa do encantamento da cidade, nem das esperanças que descendem do norte. Tu preferes as luzes, a multidão, os homens que te olham, as ruas onde dizem encontrar-se a riqueza. Tu
és diferente de mim, e viesses àquele dia a passear, tu lamentarias de estar cansada, somente isso e nada mais.
Queria também andar contigo no verão em um vale solitário, continuamente rindo pelas coisas mais simples, a explorar os segredos dos bosques, das estradas brancas, de certas casas abandonadas. Parar na ponte de madeira a observar a água que corre, escutar nos postes do telégrafo aquela longa história sem fim que vem de um canto do mundo e quem sabe aonde chegará enfim. E colher as flores do campo, e aqui deitado sobre a grama, no silêncio do sol, contemplar o abismo do céu, e as nuvens brancas que passam pelos cumes das montanhas. Tu dirás "Que lindo!". Nada mais dirias porque somos felizes; havendo nosso corpo perdido o peso dos anos, a alma tornada renovada, como se nascêssemos àquele momento.
Mas tu - agora que o penso - tu permanecerás próxima sem entender, temo, e te fixarás preocupada em avaliar uma meia-calça, me pedirás mais um cigarro, impaciente de retornar. E não dirás "Que lindo!", mas outras coisas pobres que a mim não importam. Porque infelizmente tu és assim. E não seremos, nem mesmo por um instante, felizes.
Queria ainda - permita-me dizer - queria, de braços dados, contigo atravessar as grandes ruas da cidade em um crepúsculo de novembro, quando o céu é de puro cristal. Quando os fantasmas da vida correm sobre as cúpulas e resvalam nas pessoas escuras, ao fundo das sarjetas das ruas, já cheias de inquietação. Quando lembranças de eras abençoadas e novos presságios passam sobre a terra, deixando atrás de si uma espécie de música. Com a cândida altivez das crianças, olharemos as faces alheias, milhares e milhares, que passam ao nosso lado aos montes. Nós mandaremos, sem saber, luzes de alegria e todos serão obrigados a olhar, não por inveja ou animosidade, mas sorrindo um pouco, com sentimento de bondade, graças à noite que cura as fraquezas do homem.
Mas tu - compreendo bem - invés de observar o céu de cristal e as colunas etéreas do sol extremo, queres parar e olhar as vitrines, os ouros, as riquezas, as sedas, aquelas coisas mesquinhas. E não notarás então os fantasmas, nem os pressentimentos que passam, nem te sentirás, como eu, chamada ao destino orgulhosa, nem escutarás aquela espécie de música, nem compreenderás por que as pessoas nos veem com bons olhos. Tu pensarás em seu pobre amanhã e inutilmente, sobre ti, as estátuas de ouro sobre os pináculos ergueriam as espadas aos últimos raios. E eu estarei só.
É inútil. Talvez tudo isso seja tolice, e você melhor do que eu, não presumindo tanto da vida. Talvez tu tenhas razão e sabe que é estúpido tentar. Mas ao menos, ao menos isto sim, quero revê-la. Haja o que houver, estaremos juntos de algum modo, e encontraremos alegria. Não importa se de dia ou de noite, no verão ou no outono, em um país desconhecido, em uma casa desabitada, em uma pousada esquálida. A mim bastará te ter por perto.
Eu não escutarei - prometo - os ruídos misteriosos do teto, nem olharei as nuvens, nem darei atenção à música ou ao vento. Renunciarei a essas coisas inúteis, que ainda amo. Terei paciência se não compreenderes o que digo, se falares de coisas a mim estranhas, se reclamares das roupas velhas e do dinheiro. Não haverão poesias, as esperanças compartilhadas, as melancolias tão amigas do amor. Mas eu te terei por perto.
E nós conseguiremos, verás, ser bastante felizes, com muita simplicidade, homem e mulher somente, como costuma acontecer em toda parte do mundo.
Mas tu - agora o penso - estás muito distante, centenas e centenas de quilômetros difíceis de transpor. Tu estás imersa em uma vida que desconheço, e outros homens estão próximos de ti, aos quais provavelmente sorris, como sorriras à mim em tempos passados. E bastou pouco tempo para que esquecesses de mim. Provavelmente não consegues mais lembrar o meu nome. Eu já saí de ti, perdido entre as inúmeras sombras.
Não sei não pensar em ti, e gosto de dizer-te essas coisas.

quarta-feira, novembro 19, 2014

Esse post é baseado em um relato da "mãe do Joaquim" (fica aqui um beijo pra quem entendeu). Então é igual aqueles filmes "baseados em fatos reais" (sim eu sei que é redundante).


Alguns eventos nos marcam permanentemente, e alguns acontecimentos acabam formando nosso caráter, mesmo que não tenhamos consciência disso no momento. Somente com o passar dos anos é que nos damos conta de episódios pequenos, capítulos curtos e que não pareciam que iam deixar memórias tão profundas, acabam subindo à tona e podem fazer transbordar sentimentos e reviver emoções que às vezes esquecemos ser capazes de sentir.

Ainda sou jovem, mas não sou mais tão menina. Esse relato é de um ocorrido há vários anos e, como numa viagem longa em que perdemos noção exata da distância percorrida, é difícil precisar quando exatamente tudo se deu, mas fato é que fazia calor, então chuto que fosse novembro. Mas pensando bem, naquela cidade fazia calor o ano inteiro, então podia muito bem ser julho. Digo isso porque a localização exata no tempo não importa muito, nem minha própria idade posso dizer com exatidão, mas creio que tivesse entre 9 e 10 anos.

Eu vivia numa cidade do interior. Não uma cidadezinha minúscula daquelas recém emanciapadas onde todos os habitantes trabalham na, ou para, a prefeitura. Mas também não era uma cidade grande com atrações turísticas ou diversas lojas de franquias renomadas. Não era nem uma coisa nem outra, mas era qualquer coisa entre uma e outra.

E eu estudava em uma escola que não era exatamente ao lado de casa. A certa altura, cultivei o hábito de voltar sempre com a mesma amiga. Nunca dissemos nada abertamente, mas acredito que nos sentiamos mutuamente mais protegidas, por mais que a companhia de outra garota de dez anos não pareça oferecer muita proteção, ao menos não era mais uma garota de dez anos andando sozinha.  Era também uma maneira de tornar a caminhada mais curta — apesar da distância permanecer a mesma — e mais rápida — apesar de levarmos mais tempo andando em dupla —, é o efeito mágico que o prazer de uma boa companhia tem: encurtar o tempo.

Aconteceu de um dia, numa dessas caminhadas de volta, encontrarmos um cachorro de rua. Não chegava a ser uma figura de dar pena, nem estava com nenhuma doença que causasse asco, mas aquilo nos comoveu. Com apenas um olhar pra minha amiga, entramos num acordo silencioso, e abri mão do meu lanche pra alimentar aquele animalzinho. Pus o salgado que comia no chão e o observamos comer até o fim — ele não levou muito tempo mesmo —, e movido pela fome ou pelo instinto de matilha, ele passou a nos seguir. Nos acompanhava sempre por todo o caminho, até começamos a brincar dizendo que ele era nosso cão de guarda, virou parte da rotina. Porém, apesar de termos criamos um certo apego, tínhamos vergonha do pobre animalzinho por ser um vira-lata feio e magro. Hoje tenho consciência de se tratar de um preconceito bastante ridículo, mas minha cabeça de menina funcionava de outra maneira.

Não sei bem quanto tempo passou, até que certa vez apareceu um homem, que nos parou no meio do caminho, e perguntou se o cachorro tinha dono. — Não — respondi. E suponho que fosse verdade, afinal ele sempre estava na rua para nos seguir, esperava na porta de casa e da escola. — Posso ficar com ele? — perguntou o homem. Olhei para minha amiga procurando uma expressão que me sugerisse o que dizer, mas ela parecia ainda mais incerta da resposta do que eu. De alguma maneira a resposta me veio à boca — pode — disse sem hesitar.

A partir daí planejamos uma "emboscada" para que o homem pudesse levar o cão, e pedimos que ele esperasse em frente ao supermercado no dia seguinte. Quando saímos da escola então, lá estava nosso companheiro aguardando para seguirnos, e indo de acordo com o plano, nos desviamos do caminho e fomos até o supermercado onde o homem aguardava. Ao chegarmos ao destino o homem aproximou-se com um saco e rapidamente colocou o cachorro dentro. Embora toda a ação não tenha demorado mais do que alguns segundos, por um breve momento o cãozinho encolheu-se e procurou nosso olhar, certamente apavorado e possivelmente procurando ajuda, e foi nesse instante que a hesitação, que não houve antes, me veio à mente. Uma torrente de dúvidas e medos se amontoaram por cima da sensação de que eu havia traído a confiança de um ser mais ingênuo e que havia criado um apreço enorme de mim a partir de um pequeno gesto de generosidade, e que não esperava nada em troca.

É verdade que o homem podia apenas ser um pouco bruto e não saber bem se aproximar do animal com cuidado e paciência. Ele tanto pode ter cuidado bem no cãozinho até o fim de sua vida, ou pode ter lançado o saco ao rio assim que cruzou a ponte. Fato é que nunca saberei.

Muito me comove pensar nessa história hoje em dia, tantos anos depois. Parece ter sido uma situação arquitetada pelo destino, criando de forma simbólica uma grande lição de vida, apresentando os riscos de viver, a importância de confiar, o valor de uma companhia e o peso do remorso. Tudo sem grandes consequências, mas tudo dentro da sensibilidade e capacidade de abstração de uma criança.
E sou grata, hoje, por ter tido a oportunidade de viver essa experiência ao lado de uma amizade tão verdadeira.

quarta-feira, janeiro 20, 2010


Enfim, depois de tanto tempo, venho tirar as teias!
Um amigo (tio China - thanks, btw) me passou o link desse blog, me bateu uma nostalgia fdp e resolvi postar nessa bagaça. O texto foi feito de presente para um grande amigo, espero que gostem =)


Maquiagem

Os fios de lã escura voaram pela noite quando a princesinha, com muito esforço, pulou os muros do castelo de bonecas que a aprisionava. Tropeçava pelas calçadas úmidas com seus pés de pano, os braços abertos numa tentativa de manter o equilíbrio. Tinha medo de vento não porque era frio – ela não sentia frio – mas por temer que ele a derrubasse e a fizesse quebrar o rosto de porcelana clara. Tinha medo da escuridão e do vazio surreal daquele lugar desconhecido. Mas, acima de tudo, tinha medo do silêncio.

E o mundo era silencioso demais para ela. E estava acomodado no silêncio de tal forma que qualquer ruído ecoava no nada e por fim voltava, derrotado, aos ouvidos de quem o causara.

Ela suspirou, e o suspiro foi tão em vão quanto qualquer outro ruído.Tentou gritar, mas então lembrou que ainda não era dotada de cordas vocais e então se sentou no meio fio, os botões claros que faziam as vezes de olhos começando a sangrar à medida que a porcelana se tornava pele.

Como se fossem assobios, as gotas rubras invocaram um som distante de violino e uma voz firme que transformava em canto as dores da pequena. Felizmente, a voz não desapareceu, e as gotas desceram escorrendo pela porcelana até caírem sobre um par de sapatos de couro. O dono dos sapatos era um anjo esquisito, preto e branco, com lágrimas de nanquim e um sorriso que invadia as bochechas mais do que pálidas. Tinha olhos feitos de nuvem, densos e molhados, carregados e prontos para despejar sobre todos a tempestade que guardavam em si. Era um anjo-palhaço de cartola que estendia a mão enluvada para segurar a mão metade de pano, metade de pele da boneca em transformação.

Ela segurou, e ele seguiu com ela para um canto que o silêncio, o vazio e a escuridão não alcançariam nunca. Ele tocava, cantava e sorria e ela parou de sangrar e encheu as paredes com suas risadas. Então ganhou voz e começou a cantar com ele, e quando seus pés já não eram mais de pano, eles puderam dançar. Ele fazia malabarismo com as palavras e mudava o rosto em expressões engraçadas pra enganar o tempo até que já não havia mais nada de boneca nela a não ser os botões nos olhos.

Tomando-lhe os novos e pequeninos dedos entre as mãos grandes, o anjo de cartola ajudou-a a tocar os céus e roubar um pedaço de nuvem para que pudesse ser presenteada com olhos como os seus. Olhos defeituosos, mas que viam além.

Quando pôde enfim enxergá-lo como ele merecia ser enxergado, um impulso de reflexo fez com que ela estendesse os dedos para tocar-lhe a face, manchando-os de branco. As bochechas do anjo perderam a cor, ou falta de cor por um momento, mas com um sopro a alvura reclamou seu lugar como se nunca houvesse desaparecido. As pontas dos dedos da menina boneca, contudo, permaneceram alvas, e com eles ela pintou-se também, fechando os olhos para melhor sentir a mudança.

Ao abri-los, porém, já não encontrou seu amigo de cartola nem o templo surreal onde haviam passado seu tempo juntos. Estava no mundo real, que agora já não era mais vazio, escuro ou silencioso. Agora havia muito para ver e ouvir, e muito para ser dito e pensado. Agora não havia mais medo.

Encontrou o anjo de novo algumas vidas mais tarde. Na verdade apenas passou por ele em uma de suas caminhadas. Reconheceu-o pelos olhos, gêmeos dos seus, e pelo sorriso, embora este não fosse mais negro e reluzente e nem invadisse as bochechas como antes. O rosto não apresentava a mesma brancura impecável e já não havia lágrimas de nanquim pousadas em suas bochechas. Tudo dava lugar a uma normalidade extremamente humana que passava despercebida, de modo que mal se podia crer que aqueles dedos descobertos e morenos podiam tocar os céus.

Mas ela sabia que podiam, e sorriu. Notando que ela o havia reconhecido, ele sorriu de volta, orgulhoso por ela ter sido capaz de reconhecê-lo, apesar de toda aquela maquiagem.




sexta-feira, fevereiro 16, 2007


Escrevi esse texto depois de ouvir High Hopes três vezes seguidas. Tem umas
frases copiadas na cara de pau mesmo, não reclame pela minha falta de
criatividade. Falando em falta de criatividade, faz muuito tempo que nada é
postado nesse blog. Mas agora tá aí. Bjosdeixeumcomentpls.

Doce Esperança

Existia um lugar distante de todos os outros lugares que conhecemos. E onde o tempo não importava para ninguém. Um lugar onde o Sol se escondia atrás das nuvens e as nuvens fugiam da Lua. E chovia todos os dias. E todas as flores eram vermelhas. Todos os pássaros cantavam lamentos e todos os ventos uivavam como lobos.

Neste lugar existiam pessoas. Mas todas as pessoas viviam sozinhas.

Não era diferente com ele.

Todos os dias eram iguais, e o tédio era sempre inevitável.

Sentou-se à janela para ouvir os pássaros cantando melodias sofridas acompanhados pelo adágio da chuva batendo no vidro. Uma grande pausa entre uma gota e outra. Seus olhos pesaram, mas manteve-se acordado pois algo chamou sua atenção. Podia ver uma silhueta branca deitada às raízes de uma árvore morta pouco à frente do seu quarto. Foi vê-la de perto.

O rosto angelical fitou-o com uma expressão de ternura inexplicável. Ele tocou o rosto dela, e era tão frio quanto aço, e tinha a pele pálida em suave tom de damasco. Abaixou-se e, sem dizer uma palavra, abraçou-a.

Por um instante ele sentiu que tinha amigos.
A grama pareceu-lhe mais verde. A luz era mais brilhante. O céu mais azul. As noites mais quentes. As crianças mais risonhas. A água corria. O gosto era mais doce.

Soltou-a de seus braços. E numa nuvem prateada ela desapareceu.
Antes que tudo voltasse a ser cinza ele desejou viver aquele momento para sempre. E foi o único desejo que teve em toda a sua vida.

Sentiu seu corpo ficar mais leve e viu que também estava desaparecendo aos poucos.Esfregou as mãos nos braços para se aquecer. Sorriu e sentiu-se feliz com aquela lembrança.

Sua felicidade era tão sincera e seu desejo era tão puro, que hoje aquela árvore é verde. E seus galhos têm ninhos. E o sol sempre brilha para ela. E é sempre primavera. E o chão está coberto de flores rosadas. E em seu tronco, os namorados escrevem suas iniciais dentro de corações.

E o lugar é repleto de amor.

Para sempre.