quarta-feira, novembro 19, 2014

Esse post é baseado em um relato da "mãe do Joaquim" (fica aqui um beijo pra quem entendeu). Então é igual aqueles filmes "baseados em fatos reais" (sim eu sei que é redundante).


Alguns eventos nos marcam permanentemente, e alguns acontecimentos acabam formando nosso caráter, mesmo que não tenhamos consciência disso no momento. Somente com o passar dos anos é que nos damos conta de episódios pequenos, capítulos curtos e que não pareciam que iam deixar memórias tão profundas, acabam subindo à tona e podem fazer transbordar sentimentos e reviver emoções que às vezes esquecemos ser capazes de sentir.

Ainda sou jovem, mas não sou mais tão menina. Esse relato é de um ocorrido há vários anos e, como numa viagem longa em que perdemos noção exata da distância percorrida, é difícil precisar quando exatamente tudo se deu, mas fato é que fazia calor, então chuto que fosse novembro. Mas pensando bem, naquela cidade fazia calor o ano inteiro, então podia muito bem ser julho. Digo isso porque a localização exata no tempo não importa muito, nem minha própria idade posso dizer com exatidão, mas creio que tivesse entre 9 e 10 anos.

Eu vivia numa cidade do interior. Não uma cidadezinha minúscula daquelas recém emanciapadas onde todos os habitantes trabalham na, ou para, a prefeitura. Mas também não era uma cidade grande com atrações turísticas ou diversas lojas de franquias renomadas. Não era nem uma coisa nem outra, mas era qualquer coisa entre uma e outra.

E eu estudava em uma escola que não era exatamente ao lado de casa. A certa altura, cultivei o hábito de voltar sempre com a mesma amiga. Nunca dissemos nada abertamente, mas acredito que nos sentiamos mutuamente mais protegidas, por mais que a companhia de outra garota de dez anos não pareça oferecer muita proteção, ao menos não era mais uma garota de dez anos andando sozinha.  Era também uma maneira de tornar a caminhada mais curta — apesar da distância permanecer a mesma — e mais rápida — apesar de levarmos mais tempo andando em dupla —, é o efeito mágico que o prazer de uma boa companhia tem: encurtar o tempo.

Aconteceu de um dia, numa dessas caminhadas de volta, encontrarmos um cachorro de rua. Não chegava a ser uma figura de dar pena, nem estava com nenhuma doença que causasse asco, mas aquilo nos comoveu. Com apenas um olhar pra minha amiga, entramos num acordo silencioso, e abri mão do meu lanche pra alimentar aquele animalzinho. Pus o salgado que comia no chão e o observamos comer até o fim — ele não levou muito tempo mesmo —, e movido pela fome ou pelo instinto de matilha, ele passou a nos seguir. Nos acompanhava sempre por todo o caminho, até começamos a brincar dizendo que ele era nosso cão de guarda, virou parte da rotina. Porém, apesar de termos criamos um certo apego, tínhamos vergonha do pobre animalzinho por ser um vira-lata feio e magro. Hoje tenho consciência de se tratar de um preconceito bastante ridículo, mas minha cabeça de menina funcionava de outra maneira.

Não sei bem quanto tempo passou, até que certa vez apareceu um homem, que nos parou no meio do caminho, e perguntou se o cachorro tinha dono. — Não — respondi. E suponho que fosse verdade, afinal ele sempre estava na rua para nos seguir, esperava na porta de casa e da escola. — Posso ficar com ele? — perguntou o homem. Olhei para minha amiga procurando uma expressão que me sugerisse o que dizer, mas ela parecia ainda mais incerta da resposta do que eu. De alguma maneira a resposta me veio à boca — pode — disse sem hesitar.

A partir daí planejamos uma "emboscada" para que o homem pudesse levar o cão, e pedimos que ele esperasse em frente ao supermercado no dia seguinte. Quando saímos da escola então, lá estava nosso companheiro aguardando para seguirnos, e indo de acordo com o plano, nos desviamos do caminho e fomos até o supermercado onde o homem aguardava. Ao chegarmos ao destino o homem aproximou-se com um saco e rapidamente colocou o cachorro dentro. Embora toda a ação não tenha demorado mais do que alguns segundos, por um breve momento o cãozinho encolheu-se e procurou nosso olhar, certamente apavorado e possivelmente procurando ajuda, e foi nesse instante que a hesitação, que não houve antes, me veio à mente. Uma torrente de dúvidas e medos se amontoaram por cima da sensação de que eu havia traído a confiança de um ser mais ingênuo e que havia criado um apreço enorme de mim a partir de um pequeno gesto de generosidade, e que não esperava nada em troca.

É verdade que o homem podia apenas ser um pouco bruto e não saber bem se aproximar do animal com cuidado e paciência. Ele tanto pode ter cuidado bem no cãozinho até o fim de sua vida, ou pode ter lançado o saco ao rio assim que cruzou a ponte. Fato é que nunca saberei.

Muito me comove pensar nessa história hoje em dia, tantos anos depois. Parece ter sido uma situação arquitetada pelo destino, criando de forma simbólica uma grande lição de vida, apresentando os riscos de viver, a importância de confiar, o valor de uma companhia e o peso do remorso. Tudo sem grandes consequências, mas tudo dentro da sensibilidade e capacidade de abstração de uma criança.
E sou grata, hoje, por ter tido a oportunidade de viver essa experiência ao lado de uma amizade tão verdadeira.