Sobre querer ficar
A rotina altera nossa
visão de mais de uma maneira. Se por um lado ela pode nos tornar indiferentes
aos elementos que uma vista ainda não habituada, poderia absorver com
entusiasmo e julgar como de grande beleza, por outro lado, pequenas mudanças no
decorrer dos detalhes podem capturar nosso interesse de uma forma imprevisível.
Ir à varanda, no começo da madrugada, com fones de ouvido,
escutando alguma música escolhida mais ou menos de acordo com o humor – com a
intenção de alimentá-lo ou de transformá-lo –, fumar um cigarro e observar a
rua deserta. Esse é um hábito, e não chega a ser propriamente uma rotina, que vivi por um certo tempo.
Depois de alguns meses me familiarizei, se é que se pode
dizer tal coisa, com algumas das figuras que, vez ou outra, interrompiam o
quadro estático da rua deserta, fazendo-a menos deserta por alguns instantes. E
eu gostava de imaginar sobre essas pessoas. Não que eu me perdesse em
biografias fantásticas de curiosíssima gente estranha – por algum motivo todos
de madrugada pareciam muito estranhos – esse privilégio era reservado às
pessoas nos ônibus. Aos intrusos da minha vista do deserto da rua, minha
imaginação limitava-se à sua origem e seu destino imediatos, e
invariavelmente...
Um dia uma dessas personagens foi um cachorro. Fosse o acaso
dele apenas estar passando, não daria nenhuma atenção em absoluto, mas o cão
firmou-se em frente ao portão de uma casa, sentou-se e permaneceu observando
através das grades, os dois cachorros que moravam ali. E era apenas isso –
nenhuma agitação, nenhum latido, nenhum uivo –.
A cena se repetia dia após dia. E quanto mais se fixava a
rotina, mais intrigado eu ficava com os sentimentos do animal solitário.
Parecia evidente que ansiava por companhia, impossibilitado pela intransponível barreira, restava observar de longe. Sua postura silenciosa, posso
dizer até mesmo soturno, me lembrava resignação. Mas essa resposta não me satisfez. A consistência de suas visitas e a sua pontualidade mostravam alguma persistência e inquietação, o tipo de atitude diametralmente oposta à do conformado.
Se não era companhia, o que ele via atrás das barras de
ferro? Talvez tivesse fome, e olhasse para aquele lugar como um pequeno oásis –
um lugar onde não faltava água, nem comida, nem abrigo –, talvez olhasse seus
semelhantes com pena, sempre presos ali com a mesma vista, uivando para os
mesmos vizinhos, cheirando os mesmos cheiros, e sentisse uma ânsia insaciável
de contar-lhes sobre o mundo, e tentasse dia após dia descobrir uma maneira de
transmitir tudo que sentia e experimentava sobre a vida.
Essa resposta me satisfez, por mais fantasiosa que seja a
ideia. E gosto de pensar que ele não conseguiu encontrar um meio e resolveu
seguir em frente, porque certa noite ele simplesmente parou de aparecer.
Depois de um tempo parei de fumar, e de visitar a varanda de
madrugada. Mas o pensamento nunca me abandou. A vista familiar por cima do
guarda-corpo.
Na primeira oportunidade que surgiu, viajei.