Alguns eventos nos marcam permanentemente, e alguns
acontecimentos acabam formando nosso caráter, mesmo que não tenhamos
consciência disso no momento. Somente com o passar dos anos é que nos damos
conta de episódios pequenos, capítulos curtos e que não pareciam que iam deixar
memórias tão profundas, acabam subindo à tona e podem fazer transbordar
sentimentos e reviver emoções que às vezes esquecemos ser capazes de sentir.
Ainda sou jovem, mas não sou mais tão menina. Esse relato é
de um ocorrido há vários anos e, como numa viagem longa em que perdemos noção
exata da distância percorrida, é difícil precisar quando exatamente tudo se
deu, mas fato é que fazia calor, então chuto que fosse novembro. Mas pensando
bem, naquela cidade fazia calor o ano inteiro, então podia muito bem ser julho.
Digo isso porque a localização exata no tempo não importa muito, nem minha
própria idade posso dizer com exatidão, mas creio que tivesse entre 9 e 10
anos.
Eu vivia numa cidade do interior. Não uma cidadezinha
minúscula daquelas recém emanciapadas onde todos os habitantes trabalham na, ou
para, a prefeitura. Mas também não era uma cidade grande com atrações
turísticas ou diversas lojas de franquias renomadas. Não era nem uma coisa nem
outra, mas era qualquer coisa entre uma e outra.
E eu estudava em uma escola que não era exatamente ao lado
de casa. A certa altura, cultivei o hábito de voltar sempre com a mesma amiga.
Nunca dissemos nada abertamente, mas acredito que nos sentiamos mutuamente mais
protegidas, por mais que a companhia de outra garota de dez anos não pareça
oferecer muita proteção, ao menos não era mais uma garota de dez anos andando
sozinha. Era também uma maneira de
tornar a caminhada mais curta — apesar da distância permanecer a mesma — e mais
rápida — apesar de levarmos mais tempo andando em dupla —, é o efeito mágico
que o prazer de uma boa companhia tem: encurtar o tempo.
Aconteceu de um dia, numa dessas caminhadas de volta,
encontrarmos um cachorro de rua. Não chegava a ser uma figura de dar pena, nem
estava com nenhuma doença que causasse asco, mas aquilo nos comoveu. Com apenas
um olhar pra minha amiga, entramos num acordo silencioso, e abri mão do meu
lanche pra alimentar aquele animalzinho. Pus o salgado que comia no chão e o
observamos comer até o fim — ele não levou muito tempo mesmo —, e movido pela
fome ou pelo instinto de matilha, ele passou a nos seguir. Nos acompanhava
sempre por todo o caminho, até começamos a brincar dizendo que ele era nosso
cão de guarda, virou parte da rotina. Porém, apesar de termos criamos um certo
apego, tínhamos vergonha do pobre animalzinho por ser um vira-lata feio e
magro. Hoje tenho consciência de se tratar de um preconceito bastante ridículo,
mas minha cabeça de menina funcionava de outra maneira.
Não sei bem quanto tempo passou, até que certa vez apareceu
um homem, que nos parou no meio do caminho, e perguntou se o cachorro tinha
dono. — Não — respondi. E suponho que fosse verdade, afinal ele sempre estava
na rua para nos seguir, esperava na porta de casa e da escola. — Posso ficar
com ele? — perguntou o homem. Olhei para minha amiga procurando uma expressão
que me sugerisse o que dizer, mas ela parecia ainda mais incerta da resposta do
que eu. De alguma maneira a resposta me veio à boca — pode — disse sem hesitar.
A partir daí planejamos uma "emboscada" para que o
homem pudesse levar o cão, e pedimos que ele esperasse em frente ao
supermercado no dia seguinte. Quando saímos da escola então, lá estava nosso
companheiro aguardando para seguirnos, e indo de acordo com o plano, nos
desviamos do caminho e fomos até o supermercado onde o homem aguardava. Ao
chegarmos ao destino o homem aproximou-se com um saco e rapidamente colocou o
cachorro dentro. Embora toda a ação não tenha demorado mais do que alguns
segundos, por um breve momento o cãozinho encolheu-se e procurou nosso olhar,
certamente apavorado e possivelmente procurando ajuda, e foi nesse instante que
a hesitação, que não houve antes, me veio à mente. Uma torrente de dúvidas e
medos se amontoaram por cima da sensação de que eu havia traído a confiança de
um ser mais ingênuo e que havia criado um apreço enorme de mim a partir de um pequeno
gesto de generosidade, e que não esperava nada em troca.
É verdade que o homem podia apenas ser um pouco bruto e não
saber bem se aproximar do animal com cuidado e paciência. Ele tanto pode ter
cuidado bem no cãozinho até o fim de sua vida, ou pode ter lançado o saco ao
rio assim que cruzou a ponte. Fato é que nunca saberei.
Muito me comove pensar nessa história hoje em dia, tantos anos
depois. Parece ter sido uma situação arquitetada pelo destino, criando de forma
simbólica uma grande lição de vida, apresentando os riscos de viver, a
importância de confiar, o valor de uma companhia e o peso do remorso. Tudo sem
grandes consequências, mas tudo dentro da sensibilidade e capacidade de
abstração de uma criança.
E sou grata, hoje, por ter tido a oportunidade de viver essa
experiência ao lado de uma amizade tão verdadeira.