quarta-feira, janeiro 20, 2010


Enfim, depois de tanto tempo, venho tirar as teias!
Um amigo (tio China - thanks, btw) me passou o link desse blog, me bateu uma nostalgia fdp e resolvi postar nessa bagaça. O texto foi feito de presente para um grande amigo, espero que gostem =)


Maquiagem

Os fios de lã escura voaram pela noite quando a princesinha, com muito esforço, pulou os muros do castelo de bonecas que a aprisionava. Tropeçava pelas calçadas úmidas com seus pés de pano, os braços abertos numa tentativa de manter o equilíbrio. Tinha medo de vento não porque era frio – ela não sentia frio – mas por temer que ele a derrubasse e a fizesse quebrar o rosto de porcelana clara. Tinha medo da escuridão e do vazio surreal daquele lugar desconhecido. Mas, acima de tudo, tinha medo do silêncio.

E o mundo era silencioso demais para ela. E estava acomodado no silêncio de tal forma que qualquer ruído ecoava no nada e por fim voltava, derrotado, aos ouvidos de quem o causara.

Ela suspirou, e o suspiro foi tão em vão quanto qualquer outro ruído.Tentou gritar, mas então lembrou que ainda não era dotada de cordas vocais e então se sentou no meio fio, os botões claros que faziam as vezes de olhos começando a sangrar à medida que a porcelana se tornava pele.

Como se fossem assobios, as gotas rubras invocaram um som distante de violino e uma voz firme que transformava em canto as dores da pequena. Felizmente, a voz não desapareceu, e as gotas desceram escorrendo pela porcelana até caírem sobre um par de sapatos de couro. O dono dos sapatos era um anjo esquisito, preto e branco, com lágrimas de nanquim e um sorriso que invadia as bochechas mais do que pálidas. Tinha olhos feitos de nuvem, densos e molhados, carregados e prontos para despejar sobre todos a tempestade que guardavam em si. Era um anjo-palhaço de cartola que estendia a mão enluvada para segurar a mão metade de pano, metade de pele da boneca em transformação.

Ela segurou, e ele seguiu com ela para um canto que o silêncio, o vazio e a escuridão não alcançariam nunca. Ele tocava, cantava e sorria e ela parou de sangrar e encheu as paredes com suas risadas. Então ganhou voz e começou a cantar com ele, e quando seus pés já não eram mais de pano, eles puderam dançar. Ele fazia malabarismo com as palavras e mudava o rosto em expressões engraçadas pra enganar o tempo até que já não havia mais nada de boneca nela a não ser os botões nos olhos.

Tomando-lhe os novos e pequeninos dedos entre as mãos grandes, o anjo de cartola ajudou-a a tocar os céus e roubar um pedaço de nuvem para que pudesse ser presenteada com olhos como os seus. Olhos defeituosos, mas que viam além.

Quando pôde enfim enxergá-lo como ele merecia ser enxergado, um impulso de reflexo fez com que ela estendesse os dedos para tocar-lhe a face, manchando-os de branco. As bochechas do anjo perderam a cor, ou falta de cor por um momento, mas com um sopro a alvura reclamou seu lugar como se nunca houvesse desaparecido. As pontas dos dedos da menina boneca, contudo, permaneceram alvas, e com eles ela pintou-se também, fechando os olhos para melhor sentir a mudança.

Ao abri-los, porém, já não encontrou seu amigo de cartola nem o templo surreal onde haviam passado seu tempo juntos. Estava no mundo real, que agora já não era mais vazio, escuro ou silencioso. Agora havia muito para ver e ouvir, e muito para ser dito e pensado. Agora não havia mais medo.

Encontrou o anjo de novo algumas vidas mais tarde. Na verdade apenas passou por ele em uma de suas caminhadas. Reconheceu-o pelos olhos, gêmeos dos seus, e pelo sorriso, embora este não fosse mais negro e reluzente e nem invadisse as bochechas como antes. O rosto não apresentava a mesma brancura impecável e já não havia lágrimas de nanquim pousadas em suas bochechas. Tudo dava lugar a uma normalidade extremamente humana que passava despercebida, de modo que mal se podia crer que aqueles dedos descobertos e morenos podiam tocar os céus.

Mas ela sabia que podiam, e sorriu. Notando que ela o havia reconhecido, ele sorriu de volta, orgulhoso por ela ter sido capaz de reconhecê-lo, apesar de toda aquela maquiagem.